Lei Maria da Penha avança, mas não coíbe alta de crimes contra mulher
- 07/08/2024
A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, foi
sancionada há exatos 18 anos, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O nome homenageia a biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes que
sofreu duas tentativas de homicídio pelo marido, em 1983, e se tornou ativista
da causa do combate à violência contra as mulheres.
A lei, que atinge agora a maioridade, prevê a adoção de
medidas protetivas de urgência para romper o ciclo de violência contra a mulher
e impedir que o agressor cometa novas formas de violência doméstica, seja ela
física, moral, psicológica, sexual ou patrimonial.
Antes da lei, este tipo de violência era tratado como crime
de menor potencial ofensivo. A diretora de Conteúdo do Instituto Patrícia
Galvão, Marisa Sanematsu, aponta que muitas mulheres foram agredidas e
assassinadas em razão da leniência contra esses crimes, que ficavam impunes ou
sujeitos a penas leves, chamadas de pecuniárias, como o pagamento de multas e
de cestas básicas, suavizadas por argumentos como o da legítima defesa da honra
de homens.
“As agressões contra mulheres eram tratadas como uma questão
menor, um assunto privado, a ser resolvido entre quatro paredes. Quando a
justiça era acionada, a violência doméstica era equiparada a uma briga entre
vizinhos a ser resolvida com o pagamento de multa ou cesta básica”, relembrou
Marisa Sanematsu.
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, avalia que a lei trouxe
ganhos para a sociedade brasileira. “Primeiro, ela tipifica o crime existente:
a violência física, a violência psicológica, a violência patrimonial, a
violência moral e a violência sexual. E organiza o Estado brasileiro para
garantir o atendimento às mulheres”, disse à Agência Brasil.
Como parte das celebrações do aniversário da Lei Maria da
Penha, o governo federal estabeleceu o Agosto Lilás como mês de conscientização
e combate à violência contra a mulher no Brasil.
Avanços
Para especialistas, entre as principais inovações trazidas
pela Lei Maria da Penha estão as medidas protetivas de urgência para as vítimas
da violência doméstica e familiar, como afastamento do agressor do lar ou local
de convivência, distanciamento da vítima, monitoramento por tornozeleira
eletrônica de acusados de violência doméstica, a suspensão do porte de armas do
agressor, dentre outras.
Adicionalmente, a lei estabeleceu mecanismos mais rigorosos
para coibir este tipo de violência contra a mulher e também previu a criação de
equipamentos públicos que permitam dar efetividade à lei, como delegacias
especializadas de atendimento à mulher, casas-abrigo, centros de referência
multidisciplinares da mulher e juizados especiais de violência doméstica e
familiar contra a mulher, com competência cível e criminal, entre outros
equipamentos.
A advogada especialista na defesa de mulheres, conselheira
do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea) e representante dessa
organização no Consórcio de Monitoramento da Lei Maria da Penha, Lisandra
Arantes, considera a Lei 11.340 como o principal avanço na legislação
brasileira para a proteção das mulheres da sociedade brasileira e pela primeira
vez, reconhece que a violência motivada pela misoginia, pelo ódio às mulheres,
pelas questões de gênero.
“A lei Maria da Penha foi o principal avanço que nós tivemos
em termos de proteção à mulher contra a violência. O que não significa que
ainda não tenhamos muito pra avançar.”
Números
O avanço na legislação não tem evitado, no entanto, a alta
de números de violência contra a mulher. Dados do Conselho Nacional de Justiça
sobre a atuação do poder judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha revelam
que 640.867 mil processos de violência doméstica e familiar e/ou feminicídio
ingressaram nos tribunais brasileiros em 2022.
Dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública
mostram que todos os registros de crimes com vítimas mulheres cresceram em 2023
na comparação com 2022: homicídio e feminicídio (tentados e consumados),
agressões em contexto de violência doméstica, ameaças, perseguição (stalking),
violência psicológica e estupro.
Ao longo do ano passado, 258.941 mulheres foram agredidas, o
que indica alta de 9,8% em relação a 2022. Já o número de mulheres que sofreram
ameaça subiu 16,5% (para 778.921 casos), e os registros de violência
psicológica aumentaram 33,8%, totalizando 38.507.
Os dados do anuário são extraídos dos boletins de ocorrência
policiais, compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Outro
levantamento de fórum aponta que ao menos 10.655 mulheres foram vítimas de
feminicídio no Brasil de 2015 a 2023.
De acordo com o relatório, o número de feminicídios cresceu
1,4% em 2023 na comparação com o ano anterior e atingiu a marca de 1.463
vítimas no ano passado, indicando que mais de quatro mulheres foram mortas por
dia.
O número é o maior número da série histórica iniciada pelo
FBSP em 2015, quando entrou em vigor a Lei 3.104/2015 , que prevê o feminicídio
como circunstância qualificadora do crime de homicídio e inclui o feminicídio
no rol dos crimes hediondos.
A diretora do Instituto Patrícia Galvão sugere ações de
enfrentamento mais contundentes. “Os números alarmantes de agressões e
feminicídios comprovam a urgência de um pacto de tolerância zero contra a
violência doméstica”, diz Marisa Sanematsu.
“Todo feminicídio é uma morte evitável, se o Estado e a sociedade
se unirem para enfrentar e denunciar todas as formas de violência que vêm sendo
praticadas contra as mulheres.”
Desafios
Apesar de reconhecer os avanços da legislação nestes 18
anos, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, analisa que entre as dificuldades
enfrentadas para implementação efetiva da lei estão a oferta de serviços
especializados e profissionais preparados para lidar com novos métodos de
violência contra as mulheres.
“Para garantir que ela saia do papel e de fato aconteça,
precisamos ter serviços especializados e que o todo do sistema – composto pelo
judiciário brasileiro, pela OAB, etc – dê conta de avançar na análise das
violências para darmos a garantia do combate à impunidade de agressores, porque
isso tem feito com que muitos casos [de violência] retornem.”
Em atendimento à lei Maria da Penha, o Ministério das Mulheres planeja colocar em funcionamento 40 casas da Mulher Brasileira, em todos os estados e no Distrito Federal. As unidades oferecem atendimento humanizado e multidisciplinar às mulheres em situação de violência. Atualmente, dez casas estão em operação.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta no Painel de
Monitoramento da Política de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres que,
em todo o Brasil, existem apenas 171 varas especializadas e exclusivas para
atendimento de mulheres vítima de violência doméstica e familiar.
A conselheira do CFemea Lisandra Arantes aponta que muitos
casos de violência doméstica sequer são denunciados e, por isso, a
possibilidade de proteção não consegue alcançar as mulheres que não romperam
ainda o ciclo de violência.
“Muitas vezes, [a violência] ocorre porque elas têm uma
dependência financeira do seu agressor ou estão em uma situação de submissão,
não necessariamente relacionada à questão financeira, mas por conta dessa
construção patriarcal da sociedade que a gente vive. E elas voltam a viver com
seus agressores, nessas situações em que não há medida protetiva, porque não
houve uma denúncia, não se buscou a proteção, infelizmente”, lamentou.
Outro fator negativo é a desinformação. Apenas duas, em cada
dez mulheres, se sentem bem informadas em relação à Lei Maria da Penha. Os
dados são da 10ª edição da Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher,
realizada pelo Observatório da Mulher Contra a Violência (OMV) e o Instituto
DataSenado, ambos do Senado.
A radialista Mara Régia, que apresenta o programa Viva
Maria, na Rádio Nacional da EBC desde 1981, celebra a luta de Maria da Penha e
reconhece os desafios em torno da lei.
“A Lei Maria da Penha é específica para o âmbito doméstico,
aquela violência que acontece, em geral, do marido contra a mulher. Sabemos que
as resistências à lei são muitas e que, apesar de ter chegado à maioridade, a
própria Maria da Penha tem sido muito atacada [nas redes sociais]. Hoje, é um
dia de solidariedade a essa mulher que pagou com muita dor e violência sofrida
domesticamente. E lembro que uma grande parte das mulheres do Brasil sofre essa
violência em casa, todos os dias.”
Futuro
Dezoito anos após a sanção da lei Maria da Penha,
organizações feministas, ativistas, parlamentares e pensadoras destacam a
importância de uma lei integral de proteção às mulheres em situação de
violência de gênero, que inclua novos crimes contra a mulher que surgem, por
exemplo, com inovações tecnológicas, como crimes no ambiente virtual.
Desde 2022, o Consórcio Lei Maria da Penha, em parceria com
várias organizações de mulheres e feministas, tem debatido a criação de uma lei
geral que reconheça e responda a todas as formas de violência contra mulher.
Sobre o tema, o consórcio lançou o livro A Importância de uma Lei Integral de
Proteção às Mulheres em Situação de Violência de Gênero, disponível na versão
online.
A coautora é a advogada feminista Myllena Calasans de Matos,
integrante do consórcio e do Comitê Latino Americano e do Caribe para Defesa
dos Direitos da Mulher (Cladem) do Brasil. Em entrevista à Agência Brasil, ela
disse que o consórcio tem debatido com organizações de mulheres mecanismos mais
eficazes de prevenção e de melhor acesso à justiça para as mulheres.
“Tem sido feita uma reflexão a respeito de uma lei mais
ampla, que abarque todas as formas de violência que existiam e outras que têm
surgido e, por isso, necessitam também de uma regulação. Uma lei integral de
enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres, onde vamos buscar
diretrizes, objetivos, as responsabilidades dos estados, dos municípios, dos
poderes judiciário e legislativo, pensar também em um aparato de mecanismos no
âmbito da justiça.”
EBC | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
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